Se eu fosse eu
Fugiria da lucidez
Pararia de fingir que caminho com essas pernas bambas,
que me movo com esses braços largos, desencontrados
Encontraria nas nuvens o meu espaço,
Seria, enfim, tudo o que faço
quando ninguém vê, ouve ou sente
Assumiria as asas que tenho,
os vôos noturnos que escondo,
tudo o que está oculto nos meus escombros
Me guiaria pela lua,
em plena luz do dia.
Eu seria loucura,
e essa seria a única roupagem necessária que bastaria.
Se eu fosse eu
Quebraria os espelhos,
findaria os reflexos,
afundaria os auto retratos
Não existiria nada em mim
que não estivesse tão claro,
que precisasse da escuridão
desses marcadores de personalidade ingratos
Meu tato fugiria
de qualquer definição de estilo, gênero ou traço
Não se assustaria com um tanto de cor ou excesso demasiado,
nada seria castrado.
Eu seria abstrata
e essa seria a única imagem necessária que bastaria.
Se eu fosse eu
Mudaria o sistema métrico
Pelo menos em mim,
seriam abolidas quaisquer menções
a dados ou fatores numéricos
mediria a vida sem sistemas teóricos
ou melhor, não mediria
Essas objetividades cruas
assassinam o que é puro, sublime
matam o simbolismo à queima roupa,
dificultam a existência do meu estofo interno, à toa
Esse, em que resguardo todos os poemas que não escrevi
por estar ocupada tomando providências indecentes,
resolvendo encanamentos enferrujados ou tomadas em curto, incandescentes.
Eu seria tomada por uma fiação inteira em circuito
e essa seria a única realidade necessária que bastaria.
Se eu fosse eu
Rasgaria acordos, seguros e contratos
Fugiria de qualquer coisa a longo prazo
que envolvesse possíveis fatos ou perigos iminentes
Esses, que colocam na minha mente
que devo acender as lâmpadas antes de anoitecer,
que anoitecem em mim o inesperado,
que me esperam enlouquecer buscando chaves que não perdi,
que fazem com que eu me perca em mapas de lugares que não conheci.
Passaria longe dessas probabilidades e estatísticas,
desses buracos negros cheios de dúvidas, dívidas, medos, modos e complexos universais
nesses lugares em que moram contas atrasadas, exames médicos e rotas transversais.
Eu seria entrega
e essa seria a única certeza necessária que bastaria.
Se eu fosse eu
Aprenderia a calar diante do que é imenso, desconhecido
do enorme abismo
que habita, as vezes, duas pessoas (ou três, ou quatro ou cinco)
Desdenharia das palavras,
delas, já tão gastas, inúteis, vagas
Aceitaria que certas barreiras
nem a linguagem é capaz de transpor
e acaba, na verdade, por me indispor
Me dizendo coisas que eu não ouvi,
ouvindo coisas que o outro não disse.
Eu seria silêncio
e esse seria o único som necessário que bastaria.
Se eu fosse eu
Tudo ficaria explícito e exposto
Não enlouqueceria aos poucos
com essa mania de sintetizar, resolver, registrar
Entregaria o posto
de quem tenta entender todas as línguas,
desvendar todos os gostos
Iria ao extremo oposto
decretando o fim das explicações e análises.
Eu seria simplicidade
e essa seria a única compreensão necessária que bastaria.
Se eu fosse eu
Não precisaria de todas essas gavetas, caixas e divisórias
Seria ilusória a idéia desses artefatos falsos
que só servem para me separar, me setorizar
a desintegração em mini paredes,
em nano espaços
Tentando fazer caber em compartimentos pequenos demais
coisas indissolúveis demais ao meu respeito.
Eu seria una
e essa seria a única organização necessária que bastaria.
Se eu fosse eu
Sentiria dentro de mim o enorme privilégio da vida e da morte
e não estremeceria com esse corte
Saberia que qualquer defeito ou estrago
não arruinaria o meu cenário
o espectro sagrado da minha existência
E apesar dos abalos em iminência
viveria em permanente deslumbramento e assombro comigo mesma,
essa espécie de reverência inocente
a toda essa grandiosidade e imensidão
que sou eu em harmonia.
Eu seria poesia
e essa seria a única vivência necessária que bastaria.
Andréa Góes