Então, eu estava ali, disposta, quando você me sugou para dentro do seu mundo e, pouco a pouco, eu perdi a paz. No começo, era tudo perfeito, eu podia ir e vir, os encontros eram demorados. As tardes driblavam a minha rotina e me entregavam cenas de amor que eu nunca imaginei viver. Era perfeito. Um conto de fadas contemporâneo. Mas alguma coisa saiu dos trilhos e eu me vi dentro de um arcabouço, tão logo percebi os detalhes. A minha liberdade tinha limite. O meu corpo já não podia entrar dentro daquelas roupas que escolhi com tanta empolgação. Você me podava. “Está bonito, mas não é para sair. Vão dizer que você é puta”. Chorando, eu arrancava aquilo do corpo e aceitava o sexo oferecido às pressas, em algum canto da casa, pretexto para uma desculpa seguida de demonstração de posse. Quando eu ia dormir, me perguntava se aquilo era real. Se a minha atitude passiva diante de tudo colaborava para que ele fosse mais cruel. Justificava que ele era um bom rapaz, que aquele era o modo como ele cuidava de mim. Comecei a usar o repertório dele. Eu não sabia mais me defender com os meus próprios recursos. Eu não saía mais. Ter a nossa casa, o nosso canto para voltar foi a cartada final para que eu não saísse da mira. Quando retornava dos lugares, ele fazia perguntas como quem estivesse vigiando os meus passos. Eu não contava para ninguém por medo de me acusarem. Eu estava muito aterrorizada para tomar alguma decisão. Um dia, ele levou a chave da casa, suspeitava que, por alguma razão, eu pudesse traí-lo. Eu nunca havia dado motivo para desconfianças, mas ele, inseguro e possessivo, temia que eu me cansasse daquele inferno. E estava certo. Eu cansei. Quando preparava as minhas malas, numa sexta-feira à noite, recebi um empurrão por trás, seguido de um “Que porra é essa?”. Perdi o equilíbrio e caí descompassada sobre a cama. Meus ombros doíam muito. Trêmula, não consegui esboçar nenhuma reação que fosse diferente de um estado de choque. Meus olhos arregalados e os músculos congelados denunciavam o tamanho do medo que sentia. Enquanto permaneci petrificada em meio aos lençóis floridos e perfumados com o aroma favorito dele, senti sua mão quente atravessar o meu rosto e, logo em seguida, um puxão de cabelos, que tive a sensação do meu couro cabeludo estar sendo arrancado da cabeça. “Pretendia ir a algum lugar, piranha? É macho que você vai procurar? Então, toma!”. O peso do corpo dele recaiu sobre o meu. Gélida, assustada e sem forças para clamar por socorro, fui violada. Parecia estar sendo atravessada por um trem. Nesse momento, partida ao meio, eu já não sentia mais as dores físicas. Minha alma estava despedaçada. Em cada espasmo que, de forma involuntária, meu organismo reagia, ele fazia questão de ir mais fundo, de bater com mais violência, de me torturar com as piores palavras. Mesmo destruída, ainda tive coragem de olhar em seus olhos e analisar seu semblante de prazer e realização por ser o meu dono, por me dar ordens e deter o poder de fazer comigo o que bem entendesse. Do seu rosto, começaram a deslizar algumas gotas de suor que caíam sobre a minha face. Sem demonstrar contentamento, fiquei feliz, porque sabia que aquilo iria acabar. Finalmente, senti o seu corpo estremecer. Ele explodiu dentro de mim. Levantou-se e foi em direção à porta, provavelmente para tomar um banho, limpar seu corpo da sujeira que o meu provocou. Devastada, continuei na cama, olhando para o teto e ouvindo o barulho dos gritos dos meus silêncios ecoarem entre as paredes cinzentas daquela casa durante todo o tempo que me sujeitei a isso. Chorei calada mais uma vez. Destruída, mal percebi que ele retornou ao quarto. Segurava alguma coisa reluzente com uma das mãos. Num gesto meticuloso, acariciou meus cabelos com a mão esquerda. Senti, então, a sua mão direita, bruscamente, ir em direção à minha barriga com bastante força. Depois, fui beijada na testa e de novo a mão direita atacou a mesma região. Isso se repetiu incontáveis vezes. Ora uma carícia, ora um golpe. De repente, os lençóis alvos e cheirosos foram dando vez ao rubor do meu líquido. Eu jorrei até esvaziar. Já não sentia mais nada. Pouco a pouco, perdi os sentidos. Desfaleci. Faleci. As malas que estavam quase prontas, foram desfeitas. No lugar das roupas, ali foi despejado, em pedaços, o meu corpo. E durante a madrugada, foi arremessado no córrego da cidade vizinha, que fica a poucos minutos dali. Uma semana depois, assim que o sumiço inexplicável começou a ser noticiado, fui encontrada. Ele fugiu para a casa de familiares em um estado distante. Nunca mais foi visto. E eu? Bem… eu hoje represento apenas estatísticas.
Texto em parceria. Autores: Ester Chaves e Jey Leonardo